João Cabral de Melo Neto, também chamado poeta-engenheiro, tendo em vista o cálculo, a lapidação e a objetividade de seu trabalho com os versos, foi escritor, diplomata e um dos mais importantes intelectuais de seu tempo. Ainda pouco lido pelo grande público, embora consagrado imortal da Academia Brasileira de Letras e o primeiro brasileiro a vencer o Prêmio Camões, o autor desenvolveu um estilo próprio, muito distante das características presentes na poesia de seus contemporâneos da Geração de 45. 1z3o6m
Seu estilo pétreo reverberou uma produção poética intensa e extensa, que ainda reserva inéditos. O acervo do autor na Casa Rui Barbosa revelou cerca de 40 poemas inéditos e mais de 20 textos em prosa, além de entrevistas, reunidos para publicação em 2020, ano do centenário de seu nascimento.
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Nascido em Recife (PE), em 6 de janeiro de 1920, João Cabral de Melo Neto ou um bom período da infância longe da capital, nos engenhos da família, nas zonas rurais de São Lourenço da Mata e de Moreno. Voltou a Recife com dez anos de idade, onde permaneceu até 1938, quando sua família se mudou para o Rio de Janeiro.
A mudança para a então capital brasileira demorou ainda alguns anos para ser definitiva: foi apenas no ano de 1942 que o autor se estabeleceu, de fato, no Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, publicou seu primeiro livro, Pedra do Sono, volume de poesia bem recebido pela crítica – com ressalvas. Antonio Candido, grande nome da crítica literária brasileira, e Carlos Drummond de Andrade, à época poeta já consolidado, censuram-lhe o hermetismo de suas palavras, tidas como pouco íveis ao grande público.
Em paralelo à produção literária, foi funcionário do Departamento istrativo do Serviço Público (DASP) até 1945, quando iniciou carreira na diplomacia. Membro do Itamaraty, residiu em diversos países, sem nunca deixar o ofício de escritor. Boa parte de sua obra, múltiplas vezes premiada, foi escrita no exterior. Chegou a assumir o cargo de Ministro da Agricultura durante a gestão de Jânio Quadros e João Goulart, até o golpe militar de 1964, quando retomou as atividades diplomáticas. Voltou a residir definitivamente no Brasil apenas em 1987.
Além do primoroso e extenso trabalho na literatura, João Cabral realizou também uma importante pesquisa histórico-documental a respeito das navegações espanholas e portuguesas que conduziram os europeus ao continente americano. Editada pelo Ministério das Relações Exteriores com o nome de O Arquivo das Índias e o Brasil: documentos para a história do Brasil existentes no Arquivo das Índias de Sevilha, trata-se de um extenso documento de grande valor para os historiadores latino-americanos.
Aposentou-se como embaixador em 1990. Em 1992, ou a sofrer de uma cegueira progressiva, que, aos poucos, impediu-o de ler. Praticamente cego e deprimido, morreu em seu apartamento no Rio de Janeiro, em 9 de outubro de 1999.
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João Cabral de Melo Neto foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras em 15 de agosto de 1968, ocupando a cadeira de número 37, posto antes assumido por Assis Chateaubriand, um dos maiores nomes do jornalismo brasileiro e renomada figura pública de seu tempo. João Cabral assumiu o posto na ABL em 9 de maio de 1969 e, em seu discurso de posse, homenageou seu antecessor.
Considerado hermético, antilírico, demasiado racional, João Cabral de Melo Neto distanciou-se da literatura produzida por seus contemporâneos. Poeta por excelência – com exceção de alguns esparsos títulos em prosa –, revolucionou os padrões convencionais do lirismo, desenvolvendo um estilo próprio, em linguagem objetiva e rigorosa.
Sua poesia inicialmente recebeu influências da tendência surrealista, a que se misturou uma ordenação própria e racional, antissurrealista por definição: às imagens oníricas de Pedra do Sono (1942), seu livro de estreia, juntou-se o espírito ordenador do autor.
Na contramão da maioria dos autores da Geração de 45, João Cabral rejeitou a sentimentalidade, a irracionalidade ou o verso subjetivo, adotando uma postura de reflexão crítica (e também autorreflexiva e autocrítica) e um rigor formal ímpar na literatura brasileira. Sua poesia é um exercício de linguagem, calcado no intenso trabalho com as palavras e em um permanente estado de tensão.
Em 1950, com a publicação O cão sem plumas, temáticas de cunho social aram a aparecer em suas composições. Violência, exclusão e miséria são abordadas exaustiva e profundamente pelo autor, sempre por uma via objetiva e reflexiva, indagadora da condição humana e do fator desumanizador da lógica exploratória do dinheiro. A pedra é uma figura de linguagem constantemente explorada em seus versos, evocando a dureza da realidade crua e esmagadora captada por seus olhos atentos e analíticos.
São características da obra do autor:
Publicada pela primeira vez em 1955, Morte e Vida Severina, Auto de Natal Pernambucano é a obra mais conhecida de João Cabral de Melo Neto. Recebeu adaptações para o teatro e para o cinema e foi também musicada, o que provavelmente ampliou sua divulgação ao grande público. Mais recentemente, recebeu também uma adaptação para os quadrinhos.
O alcance da obra deve-se também a uma mudança de estilo: em Morte e Vida Severina, o poeta assume uma linguagem menos hermética (difícil de compreender) – mas não por isso menos lapidada.
Trata-se de um longo poema dramático centrado na vida de Severino, um retirante do Agreste nordestino que parte em direção ao litoral, topando com a morte a cada parada: os defuntos, coveiros e funerais multiplicam-se em cada uma das cenas, bem como a fome, a secura da terra, a dureza, o desespero, a falta de saída e de solução.
Severino é a metáfora dos marginalizados; sua jornada, alegoria da vida do retirante que parte em busca da própria sobrevivência. A obra é repleta de figuras de linguagem, como a do rio Capibaribe, que representa o próprio curso da vida do retirante – e conforme seu leito seca, Severino se apavora, temeroso de que se rompa o fio tênue de sua miserável sobrevivência. Crítica e pedregosa, é uma leitura crua da situação social brasileira, que ultraa os motivos geográficos – pois a vida precária persegue Severino, embora a caminhada mude a paisagem em redor.
Estruturado em dezoito cenas (ou “partes” ou “quadros”), a maioria dos versos de Morte e Vida Severina é escrita em redondilhas maiores (versos de sete sílabas), remetendo à cultura popular e medieval (de onde o subtítulo “auto”). À linguagem dura e seca, que evoca a paisagem do sertão, unem-se as aliterações e assonâncias que conduzem grande musicalidade aos versos.
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“Escrever é estar no extremo de si mesmo.”
“Um galo sozinho não tece uma manhã.”
“O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato.”
“Daí porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra ulceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso; o natural desse idioma fala à força.”
“Não há guarda-chuva contra o tempo, rio fluindo sob a casa, correnteza carregando os dias, os cabelos.”
“Esta cova em que estás, com palmos medida, é a terra que querias ver dividida.”
Créditos das imagens
[1] Vitoriano Junior/Shutterstock
[2] Joao de Athayde /Commons
Fonte: Brasil Escola - /literatura/joao-cabral-melo-neto-sua-engenhosidade-poetica.htm